domingo, 16 de novembro de 2014

Isto é um pacto - Leia

Autor: Luan Lucio Zanette - @luazito



“Não sei exatamente como começar essa história, afinal na situação atual o que eu menos quero é escrever. Vou começar me apresentando: Meu nome é André, tenho 22 anos e sou estudante de Jornalismo. Sempre fui muito interessado por teologia, e como a minha faculdade oferecia algumas cadeiras sobre isso, cheguei a estudar o assunto um pouco mais a fundo. Esse interesse me levou a fazer, nas horas vagas, pesquisas sobre criaturas mitológicas, como sereias ou dragões, mas principalmente sobre seres do submundo: os demônios.
Como eu era um tanto obcecado quando começava a pesquisar um assunto, meus amigos costumavam me fazer desafios, do tipo “de qual espécie seria a metade peixe ou pássaro de uma sereia?” e “qual seria a velocidade de voo de um dragão?”, ou então “como é uma invocação real de um demônio?”
Isso tudo aconteceu no meu primeiro ano de faculdade. No penúltimo, eu estava em depressão profunda, por causa de muitas coisas envolvendo família, estudos, trabalho e vida amorosa. Foi aí que comecei a imaginar o que aconteceria se eu invocasse um demônio, e isso desse certo. No começo, isso passava pela minha cabeça apenas como uma ideia estúpida, ou uma pegadinha pra se fazer com os amigos. Mas a ideia estúpida foi ganhando força, e em alguns momentos minha mente ficava totalmente obcecada com ela. Quando eu finalmente decidi usá-la, direcionei todos os meus esforços mentais a fazer um trato que fosse aceitável e onde eu não fosse molestado de forma nenhuma. Cobri cada furo que eu consegui pensar antes de tentar a invocação, pois pelo que eu sabia, uma falha e eu poderia estar morto.
Na noite em que eu preparei o ritual, eu estava munido de todos os livros que consegui encontrar, além das minhas próprias anotações, e até mesmo uma cruz, que eu sabia que conseguiria retardar o que quer que tentasse me atacar, não pelo simbolismo, mas pela crença nele, que eu sabia que era muito importante.
No maior dos clichês, iniciei o ritual à meia-noite, em frente à minha casa, pois não queria dar permissão a qualquer ser para entrar lá. Para minha surpresa não funcionou, porém bastaram alguns minutos para que eu visse o que tinha faltado. Com tudo novamente pronto, meu ritual foi feito de fato à 1h11, e eu vi, se aproximando de mim, aquilo que eu tinha invocado.
De longe, foi decepcionante, pois se parecia apenas com uma pessoa, e não com o perfil animalesco que eu tinha traçado. Mas à sua aproximação, pude ver algo a mais, algo que eu não sei descrever com palavras. Cada centímetro dele era absolutamente normal, em todos os sentidos da palavra. Olhos, nariz, boca, braços, pernas, tronco: cada uma dessas partes era perfeitamente humana, e o conjunto que elas formavam também era absolutamente terreno. Porém algo – talvez o instinto – me dizia que eu estava diante de um tornado imenso de maldade, pura e condensada.
Então ele falou comigo, numa voz calma e suave perguntando o que eu queria e o que iria sacrificar para ter. Assim, fiz minha proposta: eu queria talento, sorte e beleza, muito acima do normal. Eu queria ser um destaque, porém não ao ponto de ser suspeito. Ele ouviu com atenção, e não pareceu surpreso quando eu disse que não estava disposto a sacrificar minha alma. Ao invés disso, perguntou o que então eu ofereceria por aquilo que eu pedia. Eu estava preparado para isso, então me ofereci para fazer os pactos no lugar dele, do nosso plano, enquanto usufruía do que ele me daria. Especifiquei que eu trabalharia para ele, fazendo os pactos e condenando as almas a serem engolidas pelo mal, e que enquanto assim fosse, ele não poderia influenciar minha alma, meu corpo ou minha sanidade, e nem a alma, corpo ou sanidade de qualquer pessoa com quem eu me importasse. Nesse instante, o demônio pareceu surpreso. Ele sorriu para mim com uma expressão de profundo interesse e disse na mesma voz suave:
-Garoto, você realmente tem coragem! Eu aceito seu trato, e ainda vou lhe contar uma coisa: todos os 87 humanos que um dia fizeram um pacto desses antes de você não souberam enganar um demônio!
Assim, fechamos nosso pacto e ele desapareceu, como se nunca tivesse existido.
Em semanas, minha vida mudou. Eu me tornei um aluno modelo, recebi uma gorda herança de um tio que eu nem sabia existir, e meu corpo gradualmente passou a tomar formas que sugeriam que eu tivesse uma alimentação perfeita e uma rotina de exercícios igualmente boa, o que nem de longe era verdade. Eu vivia feliz, apenas com o segredo de que eu teria que continuar a fazer pactos, pois o demônio também foi astuto e disse que, para que eu continuasse vivo, eu teria que condenar pelo menos uma alma para cada mês que eu vivesse. Eu pensava ter escrúpulos, escolhia as pessoas menos afortunadas, e as oferecia o mesmo trato: “você terá sorte, e coisas boas irão acontecer, mas você viverá apenas metade da vida que teria, mas quando morrer, será atirado num vazio sem consciência”. Isso não era problema para a maioria, eram almas que acreditavam já estar no inferno, e que a perda de consciência seria uma benção. Assim fui passando os meses, e ao final de um ano eu já tinha condenado almas suficientes para viver por duzentos anos, sem me preocupar.
Então agora, às vésperas da minha formatura, eu pensava estar mais feliz do que nunca, e tudo parecia estar perfeito quando eu voltava de mais uma festa de sexta feira.
Entrei no meu quarto, e ao acender a luz, ele estava lá: o mesmo demônio que eu tinha invocado, sentado na minha cama brincando com um ursinho de pelúcia que eu tinha desde criança, e que eu tinha usado como um talismã quando estava em depressão. O demônio ergueu a cabeça para mim, sorriu calorosamente (é difícil imaginar isso, mas considere que, ao menos na aparência, ele é completamente humano) e começou a falar: - Então, meu querido André, que bom trabalho você tem feito! Pelas minhas contas, você pode viver mais 187 anos e 11 meses, sem sequer condenar mais nenhuma alma! Meu garoto, você se esforçou demais! Por sua causa, eu engoli tantas almas que agora sou capaz de vir para esse plano quando quiser! - ele pareceu pensativo por alguns instantes, e então acrescentou – Mas agora, já que eu posso vir eu mesmo para seduzir as pessoas a serem devoradas, não preciso mais de você, não é mesmo?
Terminando de falar, ele deu o sorriso mais tresloucado e assassino que já passou pela face de um ser humano, e avançou na minha direção, mas antes de me tocar, eu consegui reunir presença de espírito e responder, quase gritando:
-Temos um trato! você não pode me tocar!
-Bem lembrado – Disse ele – mas, o fato é que eu não preciso mais do trato, e você nunca específicou que ele não poderia ser desfeito por qualquer uma das partes. Eu acho que lhe disse, que nenhum humano antes de você fez um pacto sem nenhuma falha, certo? Então é de se esperar que você imagine que o seu trato também tem uma.
-Mas... mas... eu lhe dei todo esse poder! você não pode me compensar por isso com a minha vida?
Quando eu disse isso, o demônio deu uma sonora gargalhada de prazer, tão alegre que demorou vários segundos até que ele conseguisse se acalmar o suficiente para falar -Meu pequeno humano, você realmente me divertiu até aqui, então acho que posso fazer um novo trato: vou pegar seu 187 anos, e transformar em horas, o que vai dar algo em torno de quase 8 dias em que não vou te engolir. Use eles bem – sorriu ele.
- Não há jeito de me salvar completamente? Ou pelo menos pelo tempo de uma vida normal?
Depois de mais uma estridente gargalhada, ele continuou:
-Você é uma peste insistente não é? Tudo bem, como estou me divertindo, se você conseguir mais uma alma, dobrarei esses 8 dias, e depois disso dobrarei de novo a cada nova alma, parando no seu tempo de vida original. E vou te dar uma informação adicional:
demônios já foram humanos, que, igualzinho a você, condenaram outras almas. Quando se chega a um certo número de almas condenadas, você é puxado para baixo, e quem passa a ser invocado é você. Isso é tudo que eu vou oferecer, nem insista por mais.
Chorando, aceitei o segundo trato com o demônio, sabendo que minhas chances eram suficientes, afinal eu conseguiria almas suficientes para viver normalmente. Assim que foi concluído, ele disse “agora vamos deixar um pouco mais divertido, afinal eu só disse que não te mataria”, e em velocidade impossível, comprimiu minha têmpora com o punho, me fazendo perder os sentidos.
Acordei no hospital 6 dias depois, e assim que soube disso, eu vi que não teria chance nenhuma, e que o segundo trato só serviu para prolongar meu desespero.

Então, subitamente, vi uma luz.

Um pacto que poderia ser feito por mim, sem a minha presença

Um pacto que restauraria toda a minha chance de viver.

A crença é importante, e eu acredito que isso é um pacto, e isso já basta.

Você leu até aqui, não?

Você agora vai ter sorte, muita sorte, para o resto da sua vida.

Mas sua vida não durará o que tinha que durar.

E no fim, não será paraíso nem inferno, só escuro e nada.

Me desculpe, eu estava desesperado.

Eu precisei me salvar.

Até mesmo ser puxado para baixo é melhor que a morte.

Espero que entenda.

André”.


domingo, 9 de novembro de 2014

Penitência

Autor: Geraldo de Fraga (http://blogtocaoterror.wordpress.com/)



Padre Alencar acordou no meio da noite. Coisa difícil de acontecer. Seu sono era pesado. Preguiça era um dos seus pecados, mas não o único. Ele saiu do quarto seguindo os passos que o fizeram despertar. As luzes não acendiam, então ele pegou uma velha lanterna na cômoda. Estava frio e seus ossos reclamavam enquanto ele caminhava. Passou pela sacristia, pelo altar e parou no meio da capela. As velas dos castiçais estavam acesas. Não por ele, já estava assim quando chegou. Devia ser estranho, mas não era. Ele se sentia como em um sonho, onde mesmo o que não fazia sentido parecia normal.

Então, de repente, ele não ouvia mais os passos. Mas sim, um chiado que ecoava pela igreja toda.

- Aqui, padre – disse uma voz grave.

Então toda a áurea de sonho desapareceu e padre Alencar sentiu medo. As velas se apagaram e o local foi tomado pela escuridão. Ele segurava a lanterna com as mãos trêmulas. O feixe de luz passou por alguns instantes pelas paredes igreja, iluminando as imagens dos santos.

Ele viu aqueles rostos esculpidos em barro e eles pareciam observá-lo, como uma platéia de uma tragédia grega. Rostos serenos e nada reconfortantes.

A chiado continuava ecoando.

- Quem está aí? – perguntou padre Alencar. – Vou chamar a polícia – ameaçou ele.

- Aqui, padre. Não vou chamar de novo – respondeu a voz, autoritária.

Padre Alencar apontou a lanterna em direção ao confessionário.

- O que você quer? – perguntou ele.

Ninguém respondeu. O Padre caminhou até lá. Pelas frestas da estrutura de madeira viu alguém se mexendo lá dentro. Ele entrou no confessionário e apontou a lanterna em direção da pessoa.

- Apague isso – disse o homem.

A luz iluminou o interior do confessionário por apenas um segundo, ou talvez menos. Mas Padre Alencar viu o rosto daquele homem. Era branco como cera e havia insetos onde deveria haver pelos. Seu cabelo, suas sobrancelhas e a barba eram amontoados de coisas que se mexiam e chiavam. E mesmo com todo aquele adorno repugnante, padre Alencar o reconheceu.

- Ouça minha confissão, padre. Depois me dê a penitência justa.

Então o padre desligou a lanterna e se encostou.

Durante os minutos seguintes ele ouviu algumas histórias. Um menino forçado pela mãe a ir à igreja. Ele chorava, mas não dizia por que tinha tanto medo. Sua mãe bateu nele e o obrigou a ir. Atrás da capela um seminarista o colocou no colo e o beijou, apertando sua cintura magra com suas mãos fortes.

Outro caso era o de um menino pobre que cuidava do canteiro da igreja para ajudar sua mãe doente. Um dia, o novo vigário da paróquia bateu nele. Um soco forte que cortou seu supercílio. Isso por que o menino mordeu seu pênis, quando, sufocado, tentou de tirá-lo de sua boca pequena de criança.

Ainda escutou outra história sobre outro menino que bebeu vinho pela primeira vez e pegou no sono. Acordou de bruços, por baixo do velho padre que o hafia batizado e lhe dado a primeira comunhão.

Padre Alencar lembrava-se de cada um dos meninos. Mas quando sua mente voltava no tempo e revia os acontecimentos narrados pela voz daquele homem, os meninos tinham rostos diferentes. Seus cabelos, suas sobrancelhas e seus ralos pêlos pubianos eram amontoados de coisas que se mexiam e chiavam.

- Qual é minha penitência, padre? – perguntou a voz grave.

O velho vigário abaixou a cabeça, como fazem os derrotados. Foi quando sentiu algo subindo pelas suas pernas e, assim que ergueu a batina, viu centenas de formigas subindo pelos seus pés.

- Que penitência merece a tentação em pessoa? – indagou a voz, sem disfarçar o sarcasmo.

Padre Alencar abriu a porta do confessionário e correu, sacudindo sua batina. Agora eram abelhas que pousavam em sua cabeça e grudavam nos poucos cabelos que lhe restavam. Algo úmido saía pelos seus ouvidos. Ele enfiou os dedos nas orelhas e puxou minhocas do tamanho de terços de dentro delas. Ele cuspiu uma, duas, e então, várias aranhas.

Novamente da capela estava iluminada pelas velas. E padre Alencar pôde ver os rostos de todos os santos. Ele implorou por ajuda, mas a única coisa que ouviu foi um som que parecia um bater de asas.

Em sua agonia para se livrar dos insetos, tropeçou em um dos bancos de madeira e caiu. Seu braço direito tentou segurar em um dos castiçais, mas vacilou e ele caiu de cara no chão. Sua vista escureceu aos poucos e antes de ser dominado pela escuridão, gritou para os céus jurando arrependimento e pedindo por perdão. Mas ele soube que não tinha sido ouvido, assim que uma enorme nuvem de gafanhotos invadiu a capela, quebrando as vidraças, e voando em sua direção.

Padre Alencar teve um derrame naquela noite. Assim contam os médicos. Ele foi enterrado no cemitério que fica atrás da igreja. Em sua sepultura, o epitáfio diz que ele foi “um bom pastor para seu rebanho”. E assim ele será sempre lembrado.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Manequim

Autor: Victor Follador (http://www.ditadorinvisivel.com/)



Quando Matias era criança costumava passar em frente a uma loja de roupas todos os dias enquanto percorria o trajeto da escola para a casa.
Aquele era um local agradável onde o menino observava as belas moças que adentravam o recinto e eram recebidas com cortesia e discrição pela dona do estabelecimento. Porém o que sempre fascinou o garoto eram os manequins femininos.
Ele não sabia dizer o motivo de tal gosto e admiração, mas aqueles corpos estáticos atrás da vitrine eram um deleite para sua imaginação.
Enquanto o jovem fitava suas amigas de plástico, um velho se aproximou da vitrine junto ao seu sobrinho ; - O contraste é tão cruel, beleza sem personalidade, sem profundidade, é como uma metáfora. O sobrinho falou reflexivo - Talvez a personalidade de um manequim se restrinja à aparência.
- Conheço muitas mulheres assim. – completou o senhor rindo e se afastando com seu acompanhante.
O pequeno Matias estava confuso com a conversa que escutou, até que sua atenção voltou-se para um manequim de vestido azul marinho. Jamais tivera visto um de tanta beleza e perfeição, e isto o deixou aturdido.
- É esse! – Disse uma mulher de meia idade enquanto apontava para o vestido azul.
Com prontidão a dona da loja se aproximou do manequim e com muito cuidado despiu o boneco dos pés à cabeça em frente ao garoto.
Matias ficou atônito, não conseguia entender o motivo de tal assombro ter se apossado de sua alma, afinal estava apenas olhando um boneco. Mas aquele formato era tão feminino, tão artístico. O garoto contemplava a nudez, o olhar vazio, a beleza tão artificial, virginal e singela de mero objeto inanimado.
Aquele ser inexistente havia o seduzido, porém era apenas um manequim e nada mais. Uma peça de exposição que as mulheres olhavam e se imaginavam no lugar, porém não para Matias. Ele acreditava ter descoberto algo, e em sua mente limitada, imaginou o toque frio de alguém que não tem calor, que não tem sangue correndo nas veias, alguém sem alma.
Anos se passaram, e de um garoto confuso Matias tornou-se um homem de grande intelecto e dedicado às artes e aos negócios. Houvera se arriscado em muitas empreitadas e engajou-se em grandes projetos que infelizmente não alavancaram por falta de capital. Até que então conheceu uma mulher por intermédio de um sócio.
Esta mulher chamava-se Clara; Portadora de uma imensurável e rara beleza, aparência artificial e modos de agir pouco inteligente. Dois meses depois Matias e Clara noivaram.
Matias não se sentia muito a vontade com Clara, ele era objetivo, profissional, e tinha muitas qualidades acadêmicas. Já sua esposa era obtusa, ausente de pensamento, uma mulher vaga, sem personalidade, totalmente submissa e dependente, isto o irritava profundamente.
Todos os assuntos que Clara abordava soavam triviais para Matias, restando-lhe o silêncio como única resposta. Ele não conseguia dialogar com sua parceira, havia um abismo entre o intelecto de ambos. - O que me atrai tanto nela? – questionava Matias á si mesmo enquanto nutria suas duvidas misturadas com um crescente ódio – Ela é artificial! Sinto-me conversando com a parede ou com um manequim! – “Manequim”. Por que esta palavra tivera voltado depois de tantos anos, brotava de seu subconsciente para assombrá-lo? Aquela mulher de certa maneira exercia uma estranha e silenciosa persuasão. Ela era tão irreal, fria, sem graça, sem carisma. Mesmo assim estavam inexplicavelmente juntos. Clara era como uma boneca, bela por fora e vazia por dentro. Ou seria este apenas o que ela gostaria que ele pensasse.
De qualquer maneira tentou afastar as dúvidas acerca da natureza psicológica de sua parceira, e no fundo de sua alma temia sobre o que encontraria quando sua noiva revelasse quem realmente era.
Durante a noite Matias dirigiu por longínqua estrada até uma casa remota do interior, local onde residia Clara. Estacionou ao lado do carro da noiva, que após ouvir o motor roncando saiu apressada de casa e correu para recebê-lo com paixão. O vestido azul marinho esvoaçava pelo vento noturno, sua silhueta entrava em contraste com a imponente lua erguida, trazendo um aspecto radiante à fisionomia da mulher, um lado que Matias jamais tivera visto. Aquilo tudo parecia um sonho inconcebível.
Ambos conversaram pela noite afora, e o cheiro agradável de perfume no ar era uma constante. Clara retirou os sapatos e em seguida despiu-se do vestido azul marinho, revelando a nudez ao amado. Que paralisado pela visão não conseguia agir.
Um turbilhão de pensamentos açoitavam Matias enquanto fantasmas de um passado rondava-lhe cabeça violentamente, insistindo que fossem trazidos de volta.
A nudez despertava um sentimento nostálgico, inexplicável e assustador. Ele sentia as curvas de Clara em suas mãos, como se estudasse sua anatomia detalhadamente. Entendera de uma vez o porquê gostava dela. Aquele corpo tão artificial o fazia lembrar-se de sua infância, lembrava-o do manequim frio e inexpressivo, e ainda assim tão artístico. Tão vulgar. Tão patético.
- Não vai começar? – falou Clara em tom desafiador.
- Sim. Eu irei – respondeu Matias sem empolgação – Irei terminar.

Era madrugada quando Matias voltou para casa. Ele estava diferente, tomado de uma nova alegria e vigor, jamais tivera se sentido tão bem. Lembrou-se de Clara e do amor que agora sentia por ela.
Ligeiramente seu coração foi tomado por uma dolorosa saudade, não conseguia mais viver com a ausência da amada. Ela o havia enfeitiçado como jaz aconteceu em sua infância. Clara, e toda aquela estupidez e boçalidade nada eram alem de armadilhas para um homem obcecado pela imagem de uma silhueta perfeita e mentirosa.
Então Matias dispensou a névoa de sua lembrança na medida em que se movia mecanicamente até o carro. Seus passos tornavam-se imprecisos, doentios, lentos, pesados.
Abriu sutilmente o porta-malas, espiando o conteúdo interno com um sorriso na face. Sentiu alivio ao ver seu trunfo, seu premio que estava lá aguardando por ele. Matias contemplou mais uma vez aquele olhar vazio, obtuso, submisso e sem vida. Apreciou mais uma vez aquela beleza artificial, o corpo frio, nu e inanimado de um “manequim”.


domingo, 2 de novembro de 2014

O Demônio

Autor: Bruno Vox



Ele corria como não houvesse outra coisa no mundo, apenas corria, corria para se salvar.

Olhou para trás e viu o vulto, a criatura ainda o perseguia. Desceu umas escadas de ferro pulando alguns degraus, quase caiu, mas se equilibrou segurando nas barras de apoio e conseguiu se manter de pé.

Era jovem, não mais que vinte e cinco anos, praticava exercícios e tinha boa saúde, mas seu coração disparava como se fosse explodir, seu peito doía, os pulmões estavam exaustos, não aguentava mais correr. Suava bicas, ofegava e ofegava, mas não poderia parar, não com aquilo atrás dele. Não sabia o que era aquilo, um homem? Talvez. Quando foi abordado por esse ser, podemos dizer assim, na saída da boate, conseguiu ver de relance seus olhos que brilhavam um vermelho amarelado intenso como brasa acesa.

Acabou de descer as escadas e por um instante parou para ver para onde seguiria em sua fuga. Ali era o galpão inferior da antiga fábrica, estava deserto, o maquinário havia sido vendido quando fora a falência. O rapaz sabia disso, conhecia aquele lugar, trabalhou ali, por isso correu para aquela direção nas ruas desertas da cidade, na madrugada fria e assustadora. O lugar lhe parecia ótimo para esconder, parecia acolhedor em sua memória.

Ali fedia a óleo e graxa, um aroma acre, era nauseante, mas não para ele, ele gostava daquele cheiro, se sentia bem. A luz da lua cheia a oeste entrava nas enormes janelas sem vidros da fábrica e iluminavam parcialmente aquele pátio. Lembrara-se de umas salas que ficavam ao fundo, as portas eram reforçadas, se tivesse sorte, talvez pudesse se esconder dentro de uma delas até o perseguidor desistir e ir embora já que estava exausto demais para continuar correndo e não sabia mais para onde fugir.

Seu pedido de socorro não foi atendido, mesmo com a gritaria que promoveu nas ruas e becos em que passou, seu celular não funcionava, as casas e lojas que se deparou pelo caminho estavam fechadas e com as luzes apagadas, não viu ninguém, parecia que todos haviam desaparecido da face da Terra.

Do outro lado do prédio entrou em uma das salas, mas a trinca da porta estava quebrada, saiu e tentou outra, nessa nem havia porta. Olhou para ver onde estava o maldito que o perseguiu, não viu ninguém. Em vez de ficar aliviado, ficou mais preocupado, antes ele sabia onde o monstro estava, agora poderia estar em qualquer lugar.

Tentou entrar na próxima, mas estava fechada, forçou, mas não conseguiu abri-la.

Só havia mais duas salas daquele tipo. Correu até elas, uns sete metros, mas o percurso pareceu-lhe quilômetros. Estava angustiado, amuado, se sentia um verdadeiro covarde, não sabia muito bem porque daquela corrida ao avistar o perseguidor, foi instintivo, sabia que precisava fugir quando o olhou e isso o perturbava. Era um rapaz forte, tinha um metro e noventa e um. Sempre fora robusto e alto, na escola metia medos nos colegas, era respeitado, foi assim também na faculdade e onde mais frequentava, mas hoje, o jovem parecia mais um rato fugindo de uma cobra.

Chegou frente à sala da esquerda e a porta estava somente encostada. A empurrou para abrir.

A porta de ferro fez um barulho alto ao ser aberta, a ferrugem estava corroendo as juntas. Ele entrou na sala e não viu muita coisa, a posição dela não permitia que a luz da lua ajudasse. Mas não importava muito, claro ou escuro, ver ou não, só queria estar longe do seu perseguidor, só queria estar a salvo.

Testou o trinco e viu que estava em ordem. Fechou a porta. Deu dois passos para trás e desabou sentado no chão. Respirou fundo e tentou se acalmar. Mesmo ali não tendo janela o ar congelante da noite de outono entrava por debaixo da porta e como estava próximo dela começou a sentir frio. O seu suor só piorou a sensação. Vestia só uma camisa de malha na cor preta com uma estampa de um crânio na cor branca e uma calça Jeans, seu tênis era surrado, mas de marca. Sentia falta de sua jaqueta que jogou fora no meio de sua fuga, não se lembrara onde a descartou.

Abaixou a fronte e pôs as duas mãos no rosto e começou a chorar. Chorou muito, jogou toda sua angustia e medo para fora, soluçava descompassadamente. Sua aflição era maior do que a situação, muito maior, e ele não entendia o motivo dessa angustia, desse aperto no peito, nesse nó na garganta como quase se alguém tentasse arrancar seu coração por ela.

O choro parou, os soluços diminuíram, havia se acalmado um pouco. Levantou o rosto e correu o olho pelo lugar, mas não conseguiu ver nada, a sala estava num breu intenso. Agora se sentia seguro, talvez o perseguidor houvesse desistido depois que desceu até o pátio da antiga fábrica, não havia visto ele depois disso, pensou. No entanto, não sairia dali tão cedo, não antes que o sol surgisse ao leste.

Não tinha forças para se levantar e nem queria, sentia-se bem ali, sentado como estava. Ouviu um guinchar de um rato, mas nem ligou, aquele lugar deveria estar infestados deles e seria inútil ficar incomodado, e aquilo perto do problema que enfrentava pareceu tão pequeno que outrora sentisse um asco enorme por aqueles roedores, agora até adotaria um se conseguisse se livrar desse pesadelo.

Uma hora se passou e ele começou a cambalear a cabeça. A adrenalina abaixou e o sono finalmente chegou. O suor havia secado e a sensação de frio diminuído. Estava exaurido, precisava dormir, gastara muita energia e não achou ruim um cochilo já que até agora o perseguidor não havia dado sinal de vida.

Colocou seu tronco para trás, esticou as pernas e colocou as mãos cruzadas no peito. O olho fechava e abria lentamente, a pálpebra pesava uma tonelada. Agora estava deitado, iniciando o primeiro sono, mas ouviu um barulho diferente, como de passos firmes e pesados, abriu os olhos assustado, quando as imagens tomaram forma em sua visão meio adormecida viu os olhos em brasa do seu perseguidor. Em um instante já estava de pé na porta tentando abrir o trinco enquanto o perseguidor o observava com terrível atenção.

Tentou uma. Duas vezes. Até conseguir abrir a porta. Puxou-a tão rápido quanto podia e saiu daquele lugar. Estava atônito. Como ele havia entrado? A porta ainda permanecia fechada. Tentava entender a situação, mas nada racional lhe vinha à mente, também não era hora para isso, precisava fugir, tão e somente.

Ao sair tropicou e esborrachou no chão, rasgou a camisa e ralou um pouco o peito, mas nem se deu conta, imediatamente levantou. O seu algoz estava muito perto dele, tão perto que ele podia ouvir sua respiração suja e abafada. Ele olhou para trás e viu a proximidade dos olhos em brasa, ainda não conseguia distinguir a fisionomia do perseguidor, só enxergava vulto, talvez pela pressa com que o espiara ou pela adrenalina, de qualquer maneira até agora o seu algoz era somente um vulto.

Deu mais alguns passos em correria e viu a porta que tentou abrir e não conseguiu. Em um ato desesperado se jogou contra o ferro. Não adiantou. Mas na pancada ele sentiu algo em seu bolso. Tirou, não enxergava direito, a lua já havia subido e aquele lugar estava mais escuro. Tateou, era frio. Uma Chave. Ele não se lembrara de ter nenhuma chave daquele tipo, tinha quase dez centímetros, ponderou. Enquanto divagava por um instante se esqueceu do motivo que estava fugindo, mas logo se lembrou e olhou para trás. Não havia ninguém em seu encalço. Deu um suspiro longo e assustado, mas ainda estava em uma situação difícil, alguém, não, corrigiu-se, aquilo, seja lá o fosse não era desse mundo, não poderia ser, definitivamente não era humano. Mesmo vendo seus olhos braseiros ainda nutria uma esperança de que aquilo fosse sua imaginação, uma ilusão promovida pelo medo repentino de um perseguidor misterioso.

Começou a correr para frente. No entanto, algo lhe fez parar, uma sensação. Apertou a chave com força na mão e voltou até a porta. Mesmo naquela escuridão achou a fechadura da porta e a enfiou. Esperou alguns segundos até rodá-la. CLECK. Rodou, mais uma vez. CLECK. A porta abriu.

Ele tirou a mão da chave, estava assutado. Não pensava que… – O que significava isso? – indagou baixinho, abismado, estupefato, totalmente perdido em sua mente.

Abriu mais um pouco a porta, o suficiente para sentir um fedor medonho de carne podre que vinha de dentro do local. Isso o provocou ânsia de vômito. Pensou em sair dali, nada que viria lá de dentro seria bom. Mas, a sua curiosidade era maior, a chave em seu bolso, a vontade de testá-la, algo o estava impelindo a isso.

Com cuidado abriu a porta, devagar, mas algo impediu. Forçou uma vez, mas não cedeu. Não queria entrar às cegas, queria ver o tinha lá dentro. Mas não teve escolha, na verdade tinha sim, sair dali, fugir, mas não conseguiu, sua curiosidade era maior, queria descobrir o que estava acontecendo.

Respirou fundo a fim de guardar fôlego, aquele cheiro deveria estar dez vezes pior lá dentro, não queria inspirá-lo. E em um pulo passou pela greta entre a porta e a parede.

Ao entrar pisou em algo mole, um tipo de gosma, deu uma leve escorregada, mas rapidamente recuperou o equilíbrio. Estava escuro, nada se via. Segurando o fôlego tateou a parede, a fim de encontrar um interruptor, mas sem sucesso, naquelas salas não haviam lâmpadas. Não aguentou segurar mais a respiração e inspirou.

O fedor não era dez vezes pior, era muito mais. Era horrível, indescritível, mas estranhamente a princípio só ficou um pouco zonzo e logo conseguiu acostumou com a podridão. Acostumar, não gostar.

Andou até o centro da sala. Esbarrou com o ombro direito em algo pendurado. Por algum motivo não se importou com aquilo. Estava no meio daquela sala quando esbarrou em uma mesa de ferro. A tateou e colocou a mão em algo gelado. Uma faca, percebeu de imediato. A pegou para si, pois poderia ser útil contra o perseguidor, pelo menos era melhor do que nada, pensou. Continuou tateando e achou alguma coisa de vidro e metal. Era encorpada, media uns vinte centímetros e tinha uma alça. Passou a mão e viu que a parte de vidro era levemente estufada. Não demorou a perceber que era um lampião. Balançou e pode perceber que havia combustível, chegou perto de seu nariz e deu uma fungada. Querosene.

Não fumava, mas sempre carregava uma caixa de fósforos, uma precaução mais do que qualquer coisa. Procurou nos bolsos da calça, revirou uma, duas, três vezes até se lembrar que a caixa estava na jaqueta que fora jogada na rua durante a fuga.

– Maldição! – disse espremendo a palavra entre os lábios.

Começou a tatear novamente sobre a mesa um pouco mais para ver se encontrava algo para ascender o lampião quando em um relance viu os olhos de brasa do seu perseguidor. Estava dentro da sala, perto da porta. Retirou a faca que estava na bainha de sua calça, uma faca de um tamanho médio, que poderia fazer um estrago enorme em qualquer um.

Na escuridão ele se armou em posição, se aquele monstro tentasse algo a única maneira seria atacá-lo. Estava encurralado, se perdera demais na sua curiosidade mórbida, estava sem opções a não ser confrontá-lo.

Os olhos apensar de parecerem brasas ardentes transmitiam um ar frio, de gelar os ossos, que paralisava qualquer um e foi assim que o jovem ficou. Paralisado.

O vulto se aproximou, pouco a pouco.

Já estava quase a um metro dele, começou a suar frio, a tremer o corpo inteiro, suas mãos e pernas estavam como se estivesse amarradas, seu estômago remexia lhe dando ânsia de vômito, sua cabeça girava em looping.

– O que é você? – indagou, com a voz trêmula.

O vulto parou, era indecifrável a criatura a sua frente, tinha a silhueta de um homem, mas algumas vezes parecia amorfa. Entretanto, os olhos de brasa permaneciam inabaláveis.

Ao ouvir a pergunta a criatura parou.

– O que sou eu? – rebateu com um ar de incredulidade a pergunta feita. Não conseguia ver seu maxilar mexer, era como não abrisse a boca, reparou. Sua voz era como tambores que faziam o peito do jovem balançar a cada sílaba pronunciada.

O fitou por mais alguns segundos enquanto o jovem só tremia diante do desconhecido.

Depois a criatura começou um discurso – Eu sou o demônio, eu sou a encarnação da morte, tenho sede pelo sangue e me agrado no sofrimento, sou aquele que aterroriza o mundo, sou o monstro que assola os campos, sou o destruidor de cidades, sou o mal personificado, sou a quem Lúcifer se ajoelha, sou o ser que mudará esse mundo e inundará os oceanos do rubro sangue dos inocentes, você me pergunta quem sou? Simplesmente… – fez uma pausa.

O jovem arregalou seus olhos negros. Não entendia o que ele queria dizer. O monstro se aproximou lentamente, ele não conseguia reagir ao avanço, estava mortificado, entorpecido pela situação.

Os olhos do vulto começaram a bilhar mais e mais, a brasa ardia com mais intensidade. Olho a olho, encararam-se a um palmo de distância. O jovem conseguia sentir seu cheiro, algo familiar que identificou logo.

– Simplesmente… simplesmente… eu sou você. – disse o jovem em absoluto tom de desespero.

Aquela figura deu mais um passo e se atrelou ao jovem, os dois eram um, na verdade, era somente um, era só ele, apenas o jovem.

A fisionomia dele mudou, seus olhos ardiam em um ódio absorto. Calmamente colocou sua mão debaixo da mesa, pegou um isqueiro preso com esparadrapo. Apanhou o lampião e o acendeu.

A luz revelou um quarto vermelho de manchas e respingos de sangue na parede e no teto. No chão havia corpos, pedaços de gente, cabeças, braços, pés, toda sorte de membros dilacerados. Também havia peles rasgadas e órgãos espalhados por todos os lugares. Atrás da porta tinha um tronco de uma mulher, era esse tronco que impedia a porta ter se aberto por inteira. Em um canto havia diversas facas e algumas serras, estavam ensanguentadas e também havia uns trapos de roupa limpa e um balde cheio de água perto dali.

Ele se voltou ao corpo nu de um homem que estava pendurado, aquele que esbarrara, era único naquela posição. Estava amarrado pelos pés, de cabeça para baixo e suas mãos amarradas pelas costas, parecia como um porco em um frigorífico, pronto para ser fatiado.

Enfiou as mãos nos bolsos e tirou um pote achatado, abriu e pegou um pouco do conteúdo em com o dedo e passou abaixo do nariz do homem pendurado e esse acordou imediatamente. Estava assustado, seus olhos arregalaram ao ver o jovem, tentou gritar, mas não conseguiu, seus lábios estavam cerrados com uma grande fita isolante cinza.

A chama branda do lampião balançava fazendo dançar nas paredes as sombras dos dois em uma dança que mais parecia um ritual de morte.

O jovem sorriu descontraidamente.

– Chegou a sua vez. – disse com ar de contentamento.

Pegou a faca que voltara a bainha de sua calça. Levantou o braço e abriu o estômago da vítima, que ainda vivo observava o sangue escorrer até a sua boca, via as tripas caírem nos seu rosto, passar por sua boca, até não mais conseguir respirar.

Enquanto fazia a maldade o jovem ria, gargalhava, se orgulhava do que via, se deleitava em felicidade ao estripar o homem, aquele era seu lugar, seu refúgio do mundo, ali podia mostrar o seu verdadeiro eu.

sábado, 1 de novembro de 2014

A Fresta

Autor: Arthur Dobler



''Meu pai acabara de sair do meu quarto, com certeza, por isso a fresta''.

Eu sempre a odiara, principalmente quando pequeno, -época da qual se tem uma profunda imaginação- observar aqueles poucos centímetros amedrontadores causavam-me pânico. Desviava o olhar, contava até dez, me cobria com a coberta - táticas comuns de uma criança com medo - e admito que nenhuma delas nunca fora muito efetiva. Tudo só cessava quando eu tomava coragem para me locomover pela cama e me inclinar exageradamente em direção à maçaneta, sem precisar tocar no chão, para fechá-la e por fim ao meu tormento. Eram os segundos de maior tensão e eu nunca olhava para a fresta, nunca. A ideia de que algum monstro pudesse estar me observando era, no mínimo, perturbadora.

Algumas pessoas tem medo de escuro e isso é plausível, com a ausência da luz, é difícil ter total segurança do que te cerca ou “o que são” as formas que antes eram facilmente reconhecíveis. Um amontoado de camisas em uma cadeira, por exemplo, pode virar um aterrorizante fantasma que está apenas esperando o breve momento de você pegar no sono; Um violão recostado na parede pode se tornar uma criatura negra que espreita a distância ouvindo sua respiração; até mesmo bichos de pelúcias podem ser assustadores quando se está no escuro... Reflexos em um espelho então? Nem se fala.

Mas a questão é: Tudo isso tem um limite de tempo para te causar angustia, desconforto e apreensão. As coisas submersas na penumbra podem, após algum tempo, começar a perder a sua áurea macabra. Sua visão se acostuma, seus olhos se habituam, e logo o ar nostálgico das coisas que cobrem o seu quarto volta a pairar, “Não há nada aqui” você conclui. Até mesmo a completa escuridão pode ser tranquilamente ignorada se ruídos não identificáveis forem inexistentes. Há quem não pegue no sono sem estar envolvido nas trevas. Porém o problema está nas frestas, é evidente que sim, não há como se acostumar a isso, nunca haverá.

Pois a fresta é como uma pequena passagem para o inferno. Você começa a se indagar do que realmente está ou não vendo, porque através dela não existem comprovações visuais. Você apenas enxerga um amontoado de cores intercaladas, como pixels em uma tela, uma pequena e estreita faixa, a faixa que cobre seu lado são. Pode ser que seja um olho, ou uma cabeça, às vezes um corpo inteiro, porque não só um vulto? No meio da fresta, entre um cômodo e outro, alguém pode estar espiando você.

Se a porta estivesse fechada, você poderia muito bem se assustar com sons provenientes da sala, mas jamais imaginaria nada olhando para uma porta de madeira talhada a mão, de laterais robustas com uma maçaneta reluzente a descansar. Se estivesse escancarada, você teria maior controle dos barulhos em sua casa, e apesar de imaginar coisas ao ver os objetos que ficam em frente ao seu quarto, pelo menos teria uma melhor percepção de tamanho e distância dos mesmos. Porém a fresta é um ponto cego entre uma porta aberta e uma porta fechada. É a certeza da incerteza, é o incentivo a loucura e “eu sempre a odiara”, pensei.

Ideias vagas como essas surgiram em minha mente quando, após anos sem me lembrar desse pequeno trauma, me deparo com uma porta levemente aberta no meu quarto. Desde que eu me mudara de casa, estivera ocupado demais para me preocupar com coisas ordinárias como uma fresta. Entretanto nessa madrugada sem saber ao certo o motivo, tudo isso me veio à tona, como um soco no estômago. Fiquei alguns segundos encarando aquele feixe, podia jurar que havia alguma coisa ali, mas precisava ter certeza, por isso peguei meus óculos na cabeceira para enxergar com mais nitidez. Quando o coloquei, vi que a imagem que impregnou em minha mente não passava de um grande e velho cabide, que ficava no meio do corredor entre uma divisória que dava em direção ao banheiro e a sala de estar.

Caí na cama, por um segundo meu coração quase saíra pela boca. Senti a sensação ruim de muito tempo atrás, um forte ar que corre desesperado pelo meu corpo como se rasgasse meu peito, acho que é isso que chamam de adrenalina. Preparava para me deitar quando ela –a porta - delicadamente rangeu para dentro, era como se a maldita me provocasse. Fiquei em estado de alerta, suspirei ofegante, senti uma brisa fraca passar pelo quarto. De onde vinha? Não me interessava no momento.

“Eu sou um adulto, devo agir como tal” coloquei isso em minha cabeça, levantei rapidamente, me dirigi em passos largos para aquele retângulo maldito que desenterrara algo do qual não fazia questão de me lembrar. Fechei-a com tal intensidade, que o eco emitido ressoou por toda a casa, “era o fim”. Olhei para o chão, senti uma vertigem, fui pego de surpresa. Minha vista rapidamente embaraçou e durante esses segundos eu me lembrei de como meu pai tratava minha fobia com descaso, da forma como ele dizia que eu estava sendo irracional, e de sua patética reação - severamente incompreensível-, deixando a porta entreaberta de propósito quando saía. Uma espécie de tratamento de choque.

Não se faz uma criança aprender a nadar jogando a mesma em uma piscina, assim como não se cura o medo de alguém, fazendo-o confrontá-lo de forma tão direta. E depois desse breve momento de lembranças o que eu senti fora vontade de voltar a dormir e esquecer tudo isso. Quando me virei para cama, ouvi algo afiado rangendo do outro lado... A minha espinha gelou, os meus ombros endureceram e meu corpo agiu instintivamente indo em direção à fechadura. Enquanto olhava, permaneci em total silêncio para confirmar se o que se passara fora mesmo real. Nada, nenhum barulho.

Corri e me atirei no colchão, eu sempre tive uma imaginação forte, mas isso era demais. Encarava o teto, tentando pensar no inexplicável. E como em uma epifania, eu lembrei o “porque”. Mas eu não o fiz por querer, juro, ele me provocava e sempre o fizera. Eu não podia mais aguentar aquela tortura sem fim, ele nunca fora um bom pai, e nunca mais será, porque eu dei um fim nele antes que ele fizesse o mesmo comigo. Eu não sou louco, era ele que deixava a fresta aberta, era ele que me deixava olhando para ela, era ele, não eu. Por isso eu me mudei, - não fora de bom grado - eu fora expulso, mamãe não queria ver minha cara, é por isso que eu estou aqui. Ele disse antes de "partir" que iria me buscar, e agora... Eu finalmente entendo.

Enquanto concluía o óbvio, a luz ligou sozinha e começou a piscar freneticamente, o ventilador começou a girar, e foi para a velocidade três em poucos segundos. O quarto parecia rodar, os móveis balançavam e as sombras dos objetos foram se sobrepondo e criando gigantescos vultos nas paredes, eles me espreitavam, todos eles. "Eu não queria ir, eu não quero ir, eu não vou". Então eu me escondi na coberta, fechei os olhos e contei até dez.

Foi quando todas as portas e janelas se abriram bruscamente e depois se fecharam simultaneamente, a lâmpada explodiu e um último rangido de unhas rasgando a porta fora ouvido. Eu fiquei alguns minutos sem reação, esperando minha respiração normalizar, e meus olhos se acostumarem à velha escuridão. Decidi descobrir-me para dar uma última espiada. Tudo voltara ao normal: Os móveis, o ventilador, a porta e a Fresta. Encolhi-me embaixo do edredom enquanto colocava na cabeça: "Meu pai acabara de sair do meu quarto, com certeza fora isso, por isso a fresta".

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